Billy Elliot
Função simbólica e os enganos no campo transferencial
Podemos dizer que transferência é o que se transfere, desloca, muda de lugar. Com Freud e o nascimento da psicanálise, o termo “transferência” passou a se referir ao laço que se estabelece entre analista e analisante. Laço estabelecido de um ao outro na relação entre um e outro. Freud, advertido dos enganos no campo transferencial, recomenda aos analistas cuidado e neutralidade no que tange esse campo fértil e propício aos equívocos.
Amor de transferência, neurose de transferência são termos que se ocupam do lugar central da relação entre analista e analisante na psicanálise. Com Lacan, a dimensão da transferência ganha ênfase. Ele dedica “O seminário, livro 8: A transferência” ao estudo da transferência e, em todo seu ensino, é possível recolher referências e cuidados desse tema no que tange aos enganos imaginários no campo da linguagem. Em “O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, determina a transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise: o inconsciente, a repetição, as pulsões e a transferência.
• O inconsciente, estruturado como linguagem, é o objeto do qual a psicanálise se ocupa.
• As pulsões são, por definição, parciais. Portanto não existe objeto do desejo; a pulsão nunca é satisfeita completamente, colocando em jogo a possibilidade de deslocamento do sujeito na relação com a falta de objeto que poderia satisfazer a demanda pulsional.
• A repetição nos dá pistas de que, se algo se repete, é porque não houve inscrição. Portanto podemos pensar em fixação e ficção. Existe um traço na repetição que não é traduzível, não tem sentido, é vazio. O que insiste, o que é incessante, se repete por não ter inscrição ou por não ter outra inscrição.
Freud e Lacan colocam a insatisfação pulsional como base para a constituição dos seres de linguagem.
Neste contexto, é possível considerar que a linguagem apresentada em Billy Elliot vai, pouco a pouco, minando qualquer possibilidade de expressão que não seja a de obediência e subserviência. O que vemos em cena são os movimentos de resistência que vão surgindo frente aos limites (castração) que a linguagem produz. Diante das reprovações do pai ou do irmão, Billy resiste e insiste com a certeza de que há algo para além do discurso velado de que é assim que deve ser. Um imperativo.
“Mamãe deixaria” é uma frase que, no contexto do filme, é tomada por Billy e depois por seus familiares como autorização para a criança avançar em sua busca.
Billy é um pesquisador, quer saber, se move, se indaga, um menino acessando um universo predominantemente ocupado pelo feminino.
É neste movimento que seus questionamentos a respeito da sexualidade, do feminino, do masculino e da cultura surgem. Observa, brinca com o corpo, se lança a pensar sobre a vida e a morte. Tais indagações provocam dúvidas. Há certezas muito enraizadas no contexto social e imaginário comum de seu entorno. Mas Billy não sabe, quer saber. Desconfia: “Ser bailarino é melhor que ser minerador?”, pergunta ao amigo.
Para nos constituirmos, alienamo-nos no campo da linguagem. Lacan, no Seminário 8, diz: “Ser subjetivado é tomar lugar num sujeito como válido para um outro sujeito, isto é, passar àquele ponto mais radical onde a própria comunicação é possível. Toda bateria significante pode lhes dizer que aquilo que ela não pode dizer significará no lugar do Outro. Ora, tudo o que significa para nós se passa sempre no lugar do Outro.”
Portanto Outro não é uma pessoa; é um lugar, e esse lugar é evocado no dispositivo clínico.
Aqui temos pistas dos equívocos e enganos que a transferência é incumbida de dissolver.
Algo nos é endereçado quando recebemos um possível analisante em nosso consultório. Existe uma queixa, uma demanda, temos notícia de que algo não vai bem.
Não é fácil suportar uma perda, despertar, fazer corte na repetição, nas insígnias significantes que provocam angústia e sintoma. Pagamos um preço por nos alienarmos. E há um preço a se pagar para nos separarmos. É como nascer de novo, parir-se, partir-se.
Billy, a criança, demonstra com seus atos que há um jogo sendo jogado com os outros, pessoas, mas, sobretudo, um jogo consigo. Na busca por saber. Capturado pelo balé, pela música, Billy e a professora formam uma parceria que os levará a situações divertidas, duras, sensíveis e conflituosas. A professora se mostra durona, firme, às vezes terna. Ela está, sobretudo, afetada pelo talento da criança. Uma mulher determinada, investe no menino algo que parece ser também uma projeção sua, mas que encontra parcialmente a correspondência do menino. Se incumbe de dizer que a vida de bailarino não será fácil, assim como a de minerador. Afinal, viver tem lá seus desencantos.
Algo ficou inscrito, fez marca. Algo também ficou de fora, um resto que, de fora dessa marcação, fica apagado. O sujeito resiste, insiste. Não sou esse sujeito que dizem que sou, sujeito marcado no sentido significante. O registro do afeto é marca.
No dispositivo clínico, a neurose de transferência se estabelece na relação analista/analisante, e o percurso que fazemos a cada sessão é manejar a transferência, que tende a envolver os afetos, a posição de sujeito, o amor, a insatisfação e o desejo.
Demanda, que podemos ler como queixa endereçada ao outro, está articulada ao desejo. Em outras palavras, extraímos o desejo da demanda. Por isso é tão importante escutar a narrativa (imaginário) do analisante para extrair o simbólico a ser manejado. A angústia que escutamos na clínica, segundo Lacan, não é sem objeto. Insiste decorrente da suposta falta significante no Outro.
Lacan nos presenteia com uma citação bastante didática no Seminário 8, referindo-se ao objeto: “O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de objeto, não é de modo algum apreendido, transmissível, cambiável. Ele está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas fantasias. E, no entanto, é com isso que devemos fazer objetos que, por seu lado, sejam cambiáveis.”
É precisamente essa parcialidade que impulsiona o desejo, mas também pode paralisar o sujeito. A posição do sujeito diz de seu desejo e de como se deseja. Efeitos da alienação ao significante provocam padecimento do sujeito.
A função do analista é ser objeto/causa de desejo para o sujeito, provocando a abertura de novos sentidos a cada retorno da demanda não satisfeita na dinâmica da transferência. A análise faz uma retificação na cadeia significante, cria aberturas para novas interpretações, significações, novos sentidos para as pulsões, que são essencialmente parciais. Ou seja, não há objeto que satisfaça o desejo do sujeito, que é o desejo do Outro encarnado nas figuras da nossa vida cotidiana: o pai, a mãe, o/a chefe, professor(a), namorado(a), marido e por aí vai…
A impotência do paciente, muitas vezes, mobiliza a impotência no analista devido à consistência da cena narrada pelo analisante. A escuta do analista determina a direção do tratamento. Função simbólica que deve ter no horizonte o esvaziamento da alienação significante. Trabalhamos com o sentido, marcamos o significante, marcamos a determinação significante, recolhemos os efeitos dessa marcação e analisamos se os desdobramentos apontam para um esvaziamento ou inflação de sentido.
No filme, todos gritam uns com os outros, se batem, se xingam, se descontrolam. A palavra fracassa e Billy tece uma narrativa sensível e também agressiva diante de circunstâncias que o levam para a redução de si enquanto sujeito de desejo. O corpo segue se movendo…
FREUD, Sigmund. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: A transferência. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 13: O objeto da psicanálise. Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2023.
Filme
BILLY ELLIOT. Direção de Stephen Daldry. Reino Unido: Working Title Films, 2000.
Billy Elliot – Leituras do Simbólico em Lacan Billy ElliotFunção simbólica e os enganos no campo...
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